quarta-feira, 11 de junho de 2014

PRESBÍTEROS SÃO MINISTROS DA PALAVRA? (2ª PARTE)

Parece-nos que nas Assembleias de Deus no Brasil, as bases teóricas para o entendimento das atividades ou ofício de presbíteros foram lançadas pelo missionário e evangelista sueco Nils Kastberg. Araújo, em seu Dicionário do Movimento Pentecostal escreve o seguinte

O missionário sueco Nils Kastberg escreveu, em seu artigo “Os presbíteros”, publicado no Mensageiro da Paz de agosto de 1936, p. 2, 2ª quinzena, que a Bíblia mostra, “com toda clareza”, que há duas qualidades de presbíteros. Uma qualidade é a de apóstolos, pastores e ensinadores que também são presbíteros, com base em Ef 4.11 e 1 Pe 5.1, e nos “anjos” das sete cartas do apocalipse, que, em primeiro lugar, tinham responsabilidade pelo trabalho na igreja. Esta classe de presbítero mencionada nestes textos bíblicos, segundo Kastberg, é a que, em geral, representa os que são chamados inteiramente para o ministério, e que têm o seu sustento, completo ou em parte, da igreja onde trabalham, ou de outra igreja que queiram, por algum motivo, auxiliar, ou seja, aquela que o presbítero dirige como pastor.[1]

Observe, que Kastberg lança as bases para um entendimento de que há uma casta ou elite de presbíteros, ao escrever que “há duas qualidades de presbíteros”. O pensamento de Kastberg veio a influenciar as resoluções convencionais em torno da questão.

CONVENÇÃO GERAL DE 1933

A convenção reconhece que na Bíblia Sagrada está a regra a ser por nós adotada. Reconhece também que é o Espírito Santo quem dirige o Presbitério para, de comum acordo com a igreja, consagrar anciãos para o trabalho, e que só o Presbitério pode fazê-lo. A convenção resolve que só poderão ser consagrados os que, de acordo com a Palavra de Deus, possuírem as qualidades e a idoneidade que constam em 1 Timóteo 3 [...]. A convenção resolveu também só receber acusações contra o presbítero quando as mesmas forem feitas segundo as Escrituras, isto é, por duas ou três testemunhas, e estas sejam idôneas. Reconhecem também que os presbíteros que governam bem, principalmente os que ensinam, e também segundo o grau de espiritualidade e consagração que denotam no serviço de Deus, devem ter dobrada honra. Esta convenção recomenda ainda ao Presbitério que considere e chame a dar o seu parecer, quando necessário, os que, entre nós, são considerados como colunas.[2]

No texto acima não fica muito evidente a distinção de classes no ministério. É com o avanço das discussões nas Convenções posteriores que a diferença vai se revelando e se consolidando.

CONVENÇÃO GERAL DE 1937

Conforme nos informa Daniel,

A última sessão terminou com questões eclesiásticas. O primeiro assunto, que também tinha cunho teológico, era se os anciãos (presbíteros) não poderiam ser considerados pastores. A Convenção Geral de 1937 comprendeu, citando textos com 1 Pedro 5.1, Atos 20.28 e 1 Timóteo 5.17, que em alguns casos parece haver uma diferença entre anciãos e anciãos com chamada ao ministério, estabelecendo, assim, a hierarquia eclesiástica que até hoje existe na Assembleia de Deus: diáconos, presbíteros e ministros do Evangelho (pastores e evangelistas).[3]

A ideia de uma elite ou casta de presbíteros que comanda sobre outros presbíteros é na Convenção de 1937 fortalecida. É interessante observar o que diz o texto de 1 Tm 5.17:

Os presbíteros que governam bem sejam estimados por dignos de duplicada honra, principalmente os que trabalham na palavra e na doutrina. (ARC)

Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino. (ARA)

Os presbíteros que fazem um bom trabalho na igreja merecem pagamento em dobro, especialmente os que se esforçam na pregação do evangelho e no ensino cristão. (NTLH)

Os presbíteros que lideram bem a igreja a igreja são dignos de dupla honra, especialmente aqueles cujo trabalho é a pregação e o ensino, [...]. (NVI)

Para Rienecker e Rogers, o termo presidir, governar ou liderar (gr. proestôtes) “significa superintendência geral e descreve os deveres alocados a todos os presbíteros (Guthrie).”[4] A palavra grega traduzida para honra ou honorários é timês, que pode significar honra e reconhecimento financeiro (duplo reconhecimento).[5]

No Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento, encontramos que

Fee sugere que a palavra “presbíteros” no versículo 17 provavelmente inclua “todos os que dirigem os assuntos da igreja”, isto é, os bispos de 3.1-7 (cf. At 20.17, 28; Tt 1.5-7) e os diáconos de 1 Tm 3.8-13. “A escolha da terminologia (veja também At 14.23; 15.4) reflete indubitavelmente a herança judaica da igreja; os presbíteros já eram parte integrante da estrutura das sinagogas”. O primeiro aspecto do ministério do presbítero era administrar ou dirigir “os assuntos da igreja” [...]. O segundo aspecto do serviço de um presbítero é o trabalho de pregar e ensinar [...]. A “duplicada honra” é devida aos presbíteros que lideram bem e trabalham arduamente no ministério da Palavra.[6]

Os textos bíblicos das traduções acima enfatizam a qualidade e o esforço com que se preside, prega e ensina. Não é simplesmente o fato de se ter o cargo de presbítero ou bispo que deve promover a duplicada honra, mas, a forma como tais obreiros se portam em suas funções. É neste sentido que Hebreu 13.17 deve ser entendido

Obedecei a vossos pastores e sujeita-vos a eles; porque velam por vossa alma, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil. (ARC)

No comentário da Bíblia de Estudo Pentecostal sobre 1 Timóteo 5.17-19 lemos: “Estes versículos dizem respeito à honra apropriada aos presbíteros (aqui significa pastores) que governam bem a igreja local e que vigiam cuidadosamente o rebanho [...].”

A declaração entre parêntesis “aqui significa pastores”, fazendo a clássica distinção assembleiana, é de entendimento do comentarista da Bíblia, e não expressa o sentido do original do texto bíblico, ou seja, da intenção do autor.

CONVENÇÃO GERAL DE 1946

Conforme Araújo, na Convenção Geral de 1946, realizada na Assembleia de Deus em Recife-PE, foi aprovado que só poderiam assistir às sessões convencionais “os missionários, pastores e evangelistas”, enquanto “os auxiliares, presbíteros e diáconos” só poderiam tomar parte “com a devida recomendação de seus respectivos pastores e sem direito à votação”.[7]

Dessa forma, estava sacramentada nas Assembleias de Deus no Brasil, a ideia de que presbíteros e ministros (pastores e evangelistas) não pertenciam a mesma “classe”, “casta” ou “elite ministerial”.

Contrariando a ideia acima, Araújo cita Estevâm Ângelo

[...] nunca deixou de haver líderes entre os presbíteros na Bíblia. Para ele, isto faz parte da sabedoria com que Deus lançou as bases para a boa ordem e progresso de sua igreja. Um líder não deixará de ser um resultado dos dons que “estabeleceu Deus na igreja”, entre outros, “governos” (1 Co 12.28). Os líderes eram obedecidos e respeitados, sem, contudo, se considerarem superiores aos demais ministros, exigindo serem reverenciados.[8]

A ideia de “classe”, “casta” ou “elite” chega ao ponto de fazer com que alguns presbíteros que dirigem congregações sejam repreendidos pelos pastores e evangelistas (ministros), quando aceitam ser chamados pela congregação pelo título de pastor. - Quem lhe consagrou a pastor? Pergunta a elite ministerial em tom áspero e superior. - Você não é pastor coisa nenhuma, e sim um dirigente de congregação, pois o pastor aqui sou EU. Quanta incoerência e arrogância!

CONCLUSÃO

Entendo que um dos motivos da evolução histórica desta distinção entre presbíteros e ministros (pastores e evangelistas) nas Assembleias de Deus no Brasil seja a questão financeira. Como os ministros (pastores e evangelistas) recebiam ajuda financeira por trabalhar em regime integral (ou parcial), se os presbíteros fossem “promovidos” ao status de ministros, isso incorreria em ter que remunerá-los também.

Outro motivo para a consolidação e perpetuação desta ideia equivocada de classe “superior” e “inferior” de presbíteros no contexto assembleiano, credito a inacessibilidade dos nossos pioneiros aos recursos bibliográficos, em especial, às obras nas línguas originais, léxicos, comentários e dicionários bíblicos, como as temos hoje abundantemente. Acrescente-se a isto toda oposição feita ao estudo teológico formal por longos anos.

Não encontramos no Novo Testamento, em hipótese alguma, os presbíteros ou bispos que exerciam o governo na igreja se colocando em posição de domínio ou superioridade “especial” sobre companheiros os crentes em geral. É neste sentido que Pedro escreve

Aos presbíteros que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbíteros com eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de revelar: apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto; nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas, servindo de exemplo ao rebanho. E, quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa de glória. (1 Pe 5.1-4, ARC)

Percebam a humildade do apóstolo ao afirmar “sou também presbítero com eles”, em vez de “sobre eles”. Dessa forma, mesmo que o “anjos” nas cartas às igrejas da Ásia (Ap 2-3) sejam interpretado como um presbítero-líder, isso não o colocava em posição de domínio absoluto sobre os demais. As decisões na igreja do Novo Testamento sempre foram tomadas em conjunto (At 1.15-26; 6.1-6; 15.22-29). Em 1 Timóteo 3.1-7 temos a prescrição das qualidades que deveriam ser observadas nos candidatos ao bispado, presbitério ou pastorado, mas a forma como a escolha era feita não fica clara no texto. Escrevendo a Tito, Paulo orienta o estabelecimento de presbíteros nas cidades. Também não é exposto no texto como se dava o processo. Alguns entendem, fundamentados no contexto do Novo Testamento, que a igreja local participava ativamente do processo de eleição

À medida que era aumentada a autoridade dos clérigos (especialmente dos bispos), diminuía a importância e participação dos leigos. Dessa maneira, a Igreja se tornava cada vez mais institucionalizada e menos dependente do poder e da orientação do Espírito.[9]

Anselm Grün, monge católico, escreve

Só no início do século III os bispos e presbíteros são descritos segundo conceitos sacerdotais. Desde Tertuliano e Cipriano, o bispo é designado regularmente como sacerdos (sacerdote). No ocidente, Orígenes também define o bispo como sacerdote. Ao mesmo tempo, os presbíteros são chamados de sacerdotes. Depois de Orígenes, porém, passam a ser sacerdotes num grau inferior. Os presbíteros participavam do ofício dos bispos. Os diáconos não são incluídos no sacerdócio.[10]

Como se pode observar, a ideia de sacerdotes inferiores fortalecida no século III, e não no Novo Testamento, é a mesma que norteia a distinção feita nas Assembleias de Deus entre presbíteros (sacerdotes inferiores) e pastores/evangelistas (sacerdotes superiores). Ainda sobre a consolidação de tal conceito no século III, Humberto Almeida, frei católico, afirma que

No fim do século II a Igreja chega a um ponto de expansão que exige um organograma maior na sua atuação [...]. Consolida-se a posição do bispo como pastor, com presbíteros seus “vigários”, prenúncio das futuras dioceses e paróquias.[11]

A distinção no episcopado foi reafirmada no XXI Concílio Ecumênico, o Vaticano II, nos seguintes termos

Os presbíteros, solícitos cooperadores da ordem episcopal, seu auxílio e instrumento, chamados para servir ao povo de Deus, formam com seu Bispo um único presbitério, empenhados, porém, em diversos ofícios [...]. Por esta participação no sacerdócio e na missão, os Presbíteros reconheçam o Bispo verdadeiramente como seu pai e reverentemente lhe obedeçam. O Bispo, porém, considere os sacerdotes, seus cooperadores, como filhos e amigos, a exemplo de Cristo que chamou seus discípulos não servos, mas amigos (cf, Jo 15,15).[12]

Como fica evidente com no texto acima, a relação nas Assembleias de Deus entre os pastores e os presbíteros é a mesma do modelo católico romano reafirmado no Vaticano II entre Bispos e Presbíteros, distanciado dos parâmetros do Novo Testamento.

Concluo esta segunda parte de minhas argumentações, entendendo que é quase impossível uma mudança no sistema assembleiano de governo eclesiástico, e na forma de conceber o ofício de presbítero. Há, por parte da “classe superior”, muito poder centralizado e privilégios conquistados envolvidos na questão.

Afirmo, para consolo e ânimo dos nobres e estimados obreiros e companheiros, eu, “que sou também presbítero convosco”, que um dia o Senhor da obra haverá de corrigir todos os equívocos ensinados e as injustiças praticadas acerca deste tão digno e honroso ofício.

No amor de Cristo,


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Humberto Pereira de. O sacerdócio e a sua história. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007.

ARAÚJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.


Bíblia de Estudo Batalha Espiritual e Vitória Financeira. Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2007.


Bíblia de Estudo NTLH. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri-SP, SBB, 2005.


Bíblia de Estudo Pentecostal. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida, com referências e algumas variantes. Revista e Corrigida Edição de 1995. Flórida-EUA: CPAD/ Life publishers, 1995.


Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. Edição Especial projeto Minha Esperança Brasil. São Paulo: SBI-STL Brasil, 2008.


Bíblia de Estudo Palavras-Chave: hebraico e grego. Rio de Janeiro: CPAD, 2011.

Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. 29. ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2000.

DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.

Dusing, Michael L., A Igreja do Novo Testamento in HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal. 11. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.

Gill, Deborah Menken, 1 Timóteo, in ARRINGTON, French L; STRONSTAD, Roger.Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.

GRÜN , Anselm. Ordem: vida sacerdotal. São Paulo: Edições Loyla, 2006.

HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich. Nova chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Targumim/Hagnos, 2009.

Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri-SP Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1995.


[1] Araújo, 2007, p. 716.
[2]
 Daniel, 2004, p. 76.
[3] Ibid., p. 135.
[4] Rienenecker; Rogers, 1995, p. 467.
[5] Haubeck; Siebenthal, 2009, p. 1169.
[6] Gill, 2003, p. 1477.
[7] Ibid., p. 716.
[8] Ibid., p. 715.
[9] Dusing, 2008, p. 540.
[10] Grün, 2006, p. 25.
[11] Almeida, 2007, p. 68.
[12] Compêndio Vaticano II, 2000, p. 75.

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